27 junho, 2007

«As crianças, as instituições e a esperança»


Crianças, instituições e esperança. Por estas três palavras perpassa o imperativo ético da concretização de direitos e da assunção de responsabilidades. Nestas três palavras, pela presença ou pela ausência, é do respeito pela vida que tratamos e da família que esperamos o magistério primeiro da realização da esperança.
«Não há tarefa mais importante que a de construir um mundo no qual as nossas crianças possam crescer para realizar todo o seu potencial em saúde, paz e dignidade», disse Kofi Annan, secretário-geral das Nações Unidas.
A criança é, mesmo que sem voz, a voz da nossa esperança. Importa, por isso, dar a cada criança o direito de viver em autenticidade, integralidade e sem hiatos bruscos a sua própria infância.
Toda a intervenção neste domínio deve ter por referência a Família como núcleo fundamental da Sociedade. A ética da responsabilidade do cuidar reside, em primeiro lugar, na família. A actuação do Estado na tutela dos direitos da criança deve assentar no princípio da co-responsabilização, atribuindo prevalência às medidas que integrem as crianças e os jovens no seio familiar e procurando intervenções não abusivamente intrusivas na família.
O Estado não tem vocação afectiva e inteligência emocional, nem pode ser entendido como possuindo um dom de omnisciência social. É necessário termos sempre presente que as respostas neste domínio têm que se pautar por um grande equilíbrio e sensatez.
A intervenção deve assentar nos princípios da solidariedade, da subsidiariedade e da proporcionalidade, procurando permanentemente uma resposta preventiva e dignificadora através da inserção educativa e social.
Uma intervenção transversal e interdisciplinar, actuando coordenadamente, facilitando o contacto entre as organizações públicas e privadas, de modo a que se conjuguem todos os esforços na defesa intransigente da protecção dos direitos das crianças e jovens em risco.
Ao mesmo tempo, não nos poderemos deixar guiar obsessivamente por uma visão - hoje muito em voga - de reduzir os grupos sociais, etários ou familiares a arquétipos traduzidos, como tal, em prismas e decisões frias, intermediadas e distantes.
Por que não há a criança. Há crianças. Por que não há a família. Há famílias. Por que não há a instituição. Há instituições. Bem sei que a norma é, por definição, abstracta. Mas, neste sensível domínio, as pessoas – e, em particular, as crianças - são bem concretas, com o seu perfil, a sua história, as suas vulnerabilidades, os seus anseios e desafios. A expressão da diferença é, aqui, um elemento indispensável, seja na formulação de uma política de rosto humano, seja nas acções concretas a empreender.
É indispensável intervir de forma humanizada e individualizada, olhar para cada criança e jovem em risco com a certeza de que cada um tem direito a uma família natural ou adoptiva e a um projecto de realização que respeite a sua identidade e personalidade.
Sabemos que ainda temos muito a percorrer para fortalecer a esperança dos futuros adultos.
A nova lei da adopção é um passo positivo num caminho certo, mas longo.
Não nos podemos conformar com um tão elevado número de crianças acolhidas em lares ou em estruturas temporárias de acolhimento, hoje cerca de 10000, das quais, significativamente, mais de 60% com suporte familiar regular e só 3% com projecto de adopção.
Estes simples números evidenciam – como muitos outros - que se torna inadiável clarificar conceitos, práticas e soluções que erradiquem, de vez, a ideia de “posta restante social” onde sempre se corre o risco de uniformizar o que exige diferenciação, de massificar o que supõe proximidade e personalização, onde um director ou responsável possa ser o tutor de dezenas ou de centenas de crianças.
Foi nesta perspectiva que assumi a prioridade da avaliação das situações de crianças institucionalizadas. A institucionalização não se limita a uma decisão inicial, exigindo, acima de tudo, acompanhamento e avaliação permanente dessa solução de acolhimento. Actuando sobre a criança, mas também e simultaneamente sobre a família numa realidade de vida que é dinâmica e mutável.
E é clara a necessidade de agir com rapidez. Um dia na vida destas crianças pode ser menos uma oportunidade, menos uma certeza, menos felicidade e certamente menos esperança.
Ao mesmo tempo, temos que ser imaginativos e sensíveis na busca de novas opções que se possam colocar para além do acolhimento institucional, designadamente através de famílias de acolhimento temporário, de emergência, etc.
Em suma: se tivéssemos de conjugar num único e comum ponto todas estas preocupações talvez nos bastasse dizer que a vida das pessoas e das organizações sempre tem que passar por uma métrica de senso comum: a de ter em tudo medida e de nada ser medido por demasiado.
Outro aspecto que tem a ver com a inevitável reforma das instituições de acolhimento – públicas ou não - é o equilíbrio sensato entre quantidade material e qualidade humana.
Não basta que as instituições cresçam para se desenvolverem. Ter instituições maiores não significa ter instituições necessariamente melhores. E sobretudo não se pode, deliberadamente ou por pura inércia, deixar germinar a massificação, a despersonalização, com a consequente diminuição do sentimento de pertença.
E não poderemos transformar a ultima das soluções (a institucionalização) na mais fácil ou expedita para sossego da indiferença, nem subverter a ideia primeira da prevenção, o que exige uma sintonia plena entre os direitos e os deveres. Em primeiro lugar, em nome da liberdade com responsabilidade. Em segundo lugar, o benefício da tolerância na convivência.
Bem sei que os direitos são mais aclamados, mas os deveres são mais estimados. Os direitos dividem-se na partilha dos seus frutos, mas os deveres multiplicam-se no carácter das nossas atitudes. Os direitos convivem melhor com a norma, mas os deveres enraízam-se mais na consciência. Os direitos alimentam-se mais da informação, os deveres precisam sobretudo da formação. Em suma: o maior alimento do direito é o dever.
Educar os cidadãos do próximo futuro na base de um “compacto” de direitos, não se lhes incutindo o património dos deveres, não será nunca a via mais adequada para esse desiderato.
Decorridos já mais de três anos sobre a entrada em vigor da lei (de Set. 1999) de promoção e protecção das crianças e jovens em perigo, mostra-se aconselhável avaliar se o sistema de protecção então introduzido melhorou a situação dos seus destinatários.
Sem prejuízo de uma avaliação continuada e também ciente do valor da estabilidade da lei e da bondade social que esteve seguramente na génese do actual sistema, há que fazer ajustamentos com a consciência de que nesta matéria não existem sistemas perfeitos, nem soluções definitivas.
Não se quer mudar a lei só por mudar. Nem sequer legislar à pressa sem atender criteriosamente a todos os factores envolventes e escutando os diferentes pontos de vista de questões que não têm uma resolução cientificamente unívoca.
Mas, de facto, verifica-se que não se terá tido suficientemente em conta a natureza e a gravidade de algumas acções ou omissões praticadas contra a criança e que deverão merecer um tratamento diferente. Estão neste caso as acções que colocam em sério risco a vida e a integridade física ou psíquica da criança, designadamente aquelas acções ou omissões que envolvem um grau elevado de premeditação e que merecem particular censura na ordem jurídica, v.g. os crimes de natureza pública, os maus tratos e o abuso sexual e ainda o abandono de recém-nascido.
As Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJR) deverão concentrar todas as suas energias e competências na vocação fundacional para a prevenção e a aplicação de medidas que visem a promoção da vida familiar. As Comissões de Protecção, cuja composição interdisciplinar e interinstitucional permite o envolvimento da comunidade na protecção das crianças e favorece a proximidade com as famílias, deverão levar a cabo todas as medidas adequadas no sentido de promover o consenso, preservar a relação familiar e promover programas de educação parental.
Parece prudente, porém, que o limite da sua intervenção possa vir a ser a prática de crimes de natureza pública e/ou situações que reclamem o afastamento da criança do agressor ou agente do abandono.
Ou seja, quando a criança é vítima de um crime grave, praticado dentro da sua própria família ou é vítima de abandono nos primeiros meses de vida, toda a intervenção, visando a sua protecção, não deve ficar dependente apenas do consentimento dos pais, já que é hoje sabido que tais acções são praticadas, na sua maioria, justamente pelos detentores do poder paternal.
O procedimento actualmente consentido pela Lei da Promoção e Protecção nestas situações tende a uma menor responsabilização dos pais maltratantes e inviabiliza a acção de inibição do exercício do poder paternal em casos que, pela gravidade dos actos perpetrados conta a criança, a justificariam.
As CPCJs devem investir mais nas medidas destinadas a evitar que as crianças tenham de sair do seio da família por dificuldades no exercício da função parental, impedindo a institucionalização onde ainda é possível fortalecer os laços familiares, deixando para os órgãos de soberania – Tribunais - aquilo que se traduz já na ofensa a direitos fundamentais, indiciadora de uma ruptura relacional e que pode conduzir à retirada da criança para a sua necessária protecção.
Aliás, se cabe sempre aos Tribunais decidir, através de regulação do exercício do poder paternal, quando há desacordo dos pais, em caso de separação, não faz sentido deixar a apreciação das medidas de protecção adequadas, na sequência da prática de crimes, para entidades que indubitavelmente estão vocacionadas para outro tipo de intervenção, designadamente de sentido preventivo.
Nem se vê como ultrapassar o comando constitucional que impõe a intervenção judicial, nos casos que, pela sua natureza, a exigem.
O art.º 36º n.º 6 da CRP, ao estatuir que “os filhos não podem ser separados dos pais, a não ser que estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles, e sempre mediante decisão judicial” prevê um regime excepcional de reserva judiciária.
Não pode ser admissível que num caso, por exemplo, de abuso sexual perpetrado pelo progenitor, uma CPCJR chame o agressor para lhe pedir o seu consentimento para agir.
Hoje há a consciência social de que a criança é um ser autónomo, titular de direitos, como consagra a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança ratificada por Portugal em 1990.
Também algum tempo decorrido após a aprovação da Lei Tutelar Educativa vêm-se prosseguindo a uma avaliação dos aspectos mais controversos da sua aplicação, em particular os que se referem às fronteiras departamentais de intervenção e ao papel que cabe às instituições sociais e judiciais. Preocupa-nos, sobremaneira, a consequência do actual normativo de nas mesmas instituições da Segurança Social poderem estar internados crianças ou adolescentes vítimas de abandono ou maus tratos e adolescentes agentes de factos ilícitos, sendo certo que nem sempre o pessoal destas instituições está preparado para lidar com adolescentes que iniciaram um percurso de delinquência, nem estes beneficiam de um sistema suficientemente adequado que contribua para a sua recuperação, constituindo, não raro, um mau exemplo para os jovens internados por outros motivos.
São assuntos em que muito o Ministério está beneficiando e vai continuar a beneficiar da experiência, sensibilidade e saber da Senhora Procuradora Dra. Dulce Rocha, do senhor Juiz Conselheiro Dr. Armando Leandro e sua equipa, da Senhora Dra. Catalina Pestana e seus colaboradores directos, do Dr. Luís Vilasboas e da equipa Interministerial da Adopção, do trabalho profundo e produtor de esperança do Conselho Técnico-Científico da CPL, da equipa de apoio psico-social da CPL entre outros. Aqui reitero os agradecimentos pelo empolgante e decisivo desafio que aceitaram.
Para concluir e neste momento, não posso deixar de pensar na Casa Pia e nos sonhos feitos e desfeitos de muitas crianças tornadas homens e mulheres pelo sofrimento. Na espera da justiça e no desespero do silêncio. Bem sei que o silêncio das vítimas não é comercial, não é televisionado, seria ridículo na rádio, não enche páginas de jornais, não se associa ao fascínio fugaz. Mas o seu silêncio incomoda porque interpela e perturba porque brota da alma.
Pensando nelas, resumo a importância do triângulo da esperança: prever, prevenir e reparar.
Prever é uma atitude de inteligência. Prevenir é um acto de discernimento. Reparar é um acto de justiça e de lucidez.
É com esta tripla exigência que devemos estar política, cívica e eticamente comprometidos. Certamente com imperfeições e erros, mas com a profunda convicção e o inabalável estímulo de que nos podemos unir em nome da mais nobre causa que podemos servir (repito: servir): o respeito pelo outro e a dignificação da vida. Neste caso das crianças.
É com a mesma ideia da esperança enquanto expressão do sonho acordado, que termino. Permitam-me que cite, por isso, Jean Guitton: “O recém-nascido é esperança. A criança começa a vida por um sorriso para a sua mãe. Um sorriso de esperança. Depois é a esperança da juventude, o impulso para o futuro. Mas quando este impulso cessa e a esperança falha, então o presente recai na melancolia. A esperança é a maior e a mais difícil vitória que uma pessoa pode ter sobre a sua alma”. Seja a alma de uma criança, de um pai ou mãe, de um ou uma responsável, de um ministro.


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